Não se admite mais, mediante toda a literatura existente, a ideia de que por vocação ou por treinamento, os agentes – mesmo os de grupo de elite – têm superpoderes. (Minayo, 2014 , p.525)

É comum tomarmos conhecimento nos noticiários escritos e televisivos, principalmente, bem como nas “conversas de bastidores da caserna” relatando que um policial brasileiro (militar, civil, penal, federal, rodoviário federal, bombeiro militar ou guarda civil municipal) ou integrante das Forças Armadas, fora vítima de um crime violento de roubo ou latrocínio tentado ou consumado estando fora de serviço institucional, ainda que o fato tenha ocorrido no deslocamento para assumir o plantão ou no seu retorno para à residência e, acrescido de, em alguns casos, estar usando a farda da corporação em que presta seu labor.

Há no senso comum o pensamento que o policial está de serviço 24 horas por dia, independente da situação e das condições em que se encontra. Esse pensamento em alguns momentos tem levado à vitimização por vezes desnecessária dos law enforcement brasileiros, sobretudo na condição de estarem fora de serviço. Numa consulta em grupos de aplicativo de mensagens WhatsApp, perguntamos aos policiais de todos os Estados no tocante a existência de algum policial brasileiro condenado na justiça comum ou militar pelo crime de prevaricação estando fora de serviço, presenciando um crime de roubo e não fazendo intervenção. A resposta foi de não terem registro de condenação nesse sentido.


Nesse sentido, os autores a partir do ano de 2015 iniciaram uma pesquisa catalogando notícias (escritas, vídeos e relatos pessoais) em que policiais foram vitimados fora de serviço, em particular dos crimes de roubo ou latrocínio. Passo seguinte, criamos uma conta no Google Alerta utilizando a palavra-chave “policial reage” para receber todas as publicações no idioma português (Brasil e Portugal), registrando textos (ocorrências) em que narravam um fato tendo policiais ou militares das Forças Armadas como vítimas, reagindo ou não, em casos de roubo ou latrocínio.

O critério de inclusão para constar na pesquisa foi que a vítima fosse um policial brasileiro (militar, civil, penal, federal, rodoviário federal, bombeiro militar ou guarda civil municipal) ou ainda integrante das Forças Armadas (Marinha, Exército ou Aeronáutica) e que estivesse no momento do crime sofrido, fora de serviço. Partimos do pressuposto que todos eles tiveram treinamentos com armas de fogo e defesa pessoal para executar a atividade fim; conhecimentos e habilidades essas adquiridas que podem ser empregadas para a autodefesa quando estiverem “fora da escala” e forem vítimas de crimes violentos.

Desse modo, entre julho de 2017 e dezembro de 2019, conseguimos catalogar, sistematizar e analisar 861 reportagens publicadas relatando ocorrências em que tivemos como vítima fora de serviço um integrante das forças de segurança do sistema de justiça criminal brasileiro, gerando com isso o total de 877 vítimas em todos os Estados e no Distrito Federal.

Identificamos que em vários desses cenários, o policial inicialmente não era o alvo inicial/primário dos criminosos, ou seja, ele estava na cena/local (bar, lanchonete, casa lotérica, farmácia, ônibus, posto de combustível, parada de ônibus, supermercado/mercadinho, etc.), presenciou a ação dos criminosos contra as outras pessoas que ali estavam e tomou a decisão de fazer uma intervenção, na quase totalidade das vezes, armado.

Buscamos alguns teóricos no ramo da vitimologia e encontramos em Benjamin Medelsohn (1956), alguns conceitos que nos ajudaram a entender um pouco mais esse cenário de vitimização. Nesse sentido Medelsohn (1956) apud Minayo (2014, p. 520) “cunhou a expressão ‘vitimologia’ como o estudo do processo que leva uma pessoa a ser vítima e a ciência que trata da relação entre vítima e agressor.” Ainda na mesma seara Medelsohn (1956) apud Minayo (2014, p. 520) estabeleceu a “expressão ‘vítima precipitante’ referindo-se ao fato de que muitas pessoas têm uma atitude, talvez inconsciente, que as leva a serem lesionadas ou mortas.” (grifamos)

E, por fim, Medelsohn (1956) apud Minayo (2014) estabeleceu uma classificação das vítimas relacionada ao seu grau de inocência, em quatro tipos:

1) a vítima totalmente isenta quando ignora a possibilidade de ser agredida;

2) a vítima tão culpada como o perpetrador, em situações em que compartilha com ele os resultados do dano;

3) a vítima mais culpada que o perpetrador por ter provocado a violência; e

4) vítima-culpada, ou seja, a que recebe o revide por seu ataque.

Assim, no momento em que passamos a analisar de forma mais detalhada e crítica a vitimização dos policiais fora de serviço em contextos de roubos ou latrocínios, valendo-nos dos textos e, principalmente, de imagens em vídeos publicados no Youtube e Redes Sociais, constatamos que em alguns os casos a opção de ser vitimado partiu do próprio policial e não especificamente do criminoso. Deixamos evidente que, jurídica e eticamente falando, a culpa será sempre do criminoso que provocou o início do fato, porém sob o ponto de vista de autoproteção, vitimização ou sobrevivência policial, esse tem a faculdade, em dois cenários a seguir analisados, de entrar para as estatísticas e ser mais um “número.”

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Desse modo, analisando o acervo de reportagens, vídeos e relatos pessoais, estabelecemos três tipos de vítimas policiais fora de serviço em cenários de roubos ou latrocínios:

1 – VÍTIMA DIRETA

2 – VÍTIMA INDIRETA

3 – VÍTIMA DILIGENTE.

VÍTIMA DIRETA:

Quando ela está na cena inicial do crime, é abordada diretamente ou está na iminência de sê-lo pelo criminoso mesmo tendo outras pessoas no cenário. Nesse contexto, a VÍTIMA DIRETA não tem escolhas. Ela está no front. Deve-se então, valer-se do seu conhecimento e treinamento recebidos para sobressair ao perigo concreto à sua sobrevivência, ou seja, ela não tem a faculdade de intervir ou não.

Para ilustrar essa tipologia de vítima, reproduzimos essa reportagem:

Policial é assaltado enquanto pedalava em João Pessoa

Criminosos roubaram a bicicleta e uma pistola do policial.

Por Redação – 21 de dezembro de 2017

Um oficial do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar (Bope) foi assaltado na manhã desta quinta-feira (21), na área entre Manaíra e o bairro São José, em João Pessoa.

Os bandidos teriam saído de um matagal e o PM foi abordado quando passava de bicicleta pela área. O policial não pôde reagir e acabou rendido.

Os criminosos roubaram a bicicleta e uma pistola do policial. Eles fugiram e até o fechamento desta matéria ainda não haviam sido presos.

Como visto, o policial militar foi abordado diretamente pelos criminosos. Dada as condições em que se encontrava, decidiu adotar uma conduta passiva, ou seja, não reativa e, desse modo, mesmo tendo a sua arma roubada, permaneceu vivo e ileso.

VÍTIMA INDIRETA

Quando ela está na cena inicial do crime, presencia os criminosos praticarem o roubo contra terceiros e toma a decisão de intervir, armado ou não. Nesse contexto, a VÍTIMA INDIRETA tem a opção, a faculdade de intervir. Além disso, tem a oportunidade de “escolher” o momento para intervir.

Ilustramos essa tipologia com um fato lamentável ocorrido na cidade de João Pessoa-Paraíba no ano de 2018, onde os autores residem e tiveram acesso às imagens do Circuito Fechado de Televisão (CFTV) e relatórios sobre o ocorrido, conforme reportagem seguinte:

Policial militar morre após troca de tiros com assaltantes, em João Pessoa

PM estava de folga quando presenciou tentativa de assalto a uma idosa e decidiu confrontar os suspeitos, mas foi baleado.

Por G1 PB 30/06/2018 18h53

Um policial militar morreu na tarde deste sábado (30), após troca de tiros com dois assaltantes no Centro de João Pessoa. De acordo com a assessoria de imprensa da Polícia Militar, o PM tentou impedir um assalto a uma mulher e foi baleado.

Segundo a assessoria, o policial Ewerton Fernandes Barros estava de folga quando passava na Avenida João Machado e presenciou uma tentativa de assalto a uma idosa que estava no local e decidiu confrontar os suspeitos.

Durante a troca de tiros, um dos assaltantes foi baleado pelo policial e morreu ainda no local. O outro suspeito conseguiu fugir.

O policial também foi atingido na troca de tiros e chegou a ser socorrido por uma equipe do Serviço de Atendimento Médico de Urgência (Samu), mas não resistiu e morreu a caminho do Hospital de Trauma.

A assessoria informou que o corpo de Ewerton Fernandes está no Departamento de Medicina Legal (DML) de João Pessoa e o velório ainda não tem horário marcado. O policial militar atuava na PM há dois anos.

Constatamos pelas imagens de CFTV que o policial militar vítima, nesse fatídico dia, estava numa motocicleta transitando normalmente, momento em que visualizou uma senhora sendo vítima de roubo. Decidiu então fazer a intervenção. Ao descer da sua motocicleta e anunciar que era “polícia” recebeu como resposta do criminoso, tiros disparados que lhe atingiram e foram fatais mesmo sendo prontamente socorrido ao hospital. O criminoso, de igual modo, foi atingido e foi à óbito.

VÍTIMA DILIGENTE

Quando ela não está na cena inicial do crime e é informada por terceiros do ocorrido. Deixa o seu ambiente seguro, normalmente é a sua residência, e vai em diligência no sentido de localizar os criminosos.

Podemos ilustrar esse comportamento com o caso seguinte:

Policial militar é baleado após tentar impedir assalto, em João Pessoa

Vítima estava de folga e foi atingida por um tiro na região da coxa.

Por G1 PB10/02/2020 20h24

Um policial militar, de 48 anos, foi baleado após tentar impedir um assalto nesta segunda-feira (10), em João Pessoa. Segundo informações da PM, a vítima estava de folga e foi atingida por um tiro na região da coxa.

Ainda segundo a polícia, o policial estava perto da casa onde mora quando viu dois homens tentando assaltar uma pessoa. Ele teria perseguido os suspeitos e houve troca de tiros.

O policial foi socorrido para o Hospital de Trauma de João Pessoa. A unidade hospitalar informou que o estado de saúde dele é regular. Até as 20h20 desta segunda-feira, a dupla não havia sido detida.

Neste caso, como ocorreu na cidade onde os autores moram, tivemos acesso às imagens de Circuito Fechado de Televisão (CFTV), além do acesso ao relatório da ocorrência. Em verdade, o Sargento vítima foi informado por uma amigo que dois criminosos tinham roubado uma transeunte numa rua próxima onde estava o policial vítima. Esse, por sua vez, solicitou ao amigo que o acompanhasse na moto para identificar a referida dupla; o que ocorreu instantes depois considerando a proximidade do local, iniciando um tiroteio após a tentativa de abordagem aos dois criminosos por parte do Sargento e finalizando, pelas imagens, com ele e um dos criminosos ferido. O outro criminoso fugiu ileso.

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Constatamos que o “alvo” primário dos criminosos não era o policial vítima reportado no texto, e sim uma mulher transeunte. Por alguma razão, ele decidiu sair da sua zona de segurança e intervir armado. Nesse cenário ele tinha a opção de ligar para o número de emergência 190, solicitar e aguardar o apoio de outros policiais militares, fazer um acompanhamento à distância e mantendo a central de emergência informada permanentemente do trajeto ou ainda escolher o momento “menos inseguro” para realizar a intervenção. Ou seja, ele teve a faculdade de ser vítima.

Ainda podemos usar uma estória anedótica de guerra. Assim, vejamos as condições de um soldado nas trincheiras, um piloto de caça e um general no posto de comando.

No cenário de uma guerra hipotética, os soldados estando cercados pelo inimigo são o que estamos classificando de VÍTIMA DIRETA; eles não têm a faculdade de ser ou não a vítima. Intervir ou não. Devem usar seus conhecimentos e treinamentos pertinentes para sobreviverem.

Ainda nessa mesma guerra imaginária, temos o piloto de caça que visualiza a cena acima citada. Ele, numa análise primária e sem levar em conta os fatores éticos ou heroicos, tem a faculdade de ser uma VÍTIMA INDIRETA ao aproximar a sua aeronave, para salvar os soldados encurralados, do alcance dos tiros da artilharia inimiga.

O general, por seu turno que está localizado e seguro no posto de comando, recebe a informação do violento combate e por razões que não cabe aqui entrar no mérito ou discussão pormenorizada, decide ir em auxílio às suas tropas, transformando-se potencialmente numa VÍTIMA DILIGENTE.

Desse modo, temos que a condição do piloto de caça e do general se enquadram nas duas últimas tipologias de vítima. Os soldados nas trincheiras estão, portanto, na primeira classificação, ou seja, já foi “escolhida” pelo inimigo, e não possui mais a condição de escolher se vai participar do evento, ele já faz parte, portanto está no “centro do furacão.” O que lhes resta é saber responder ao evento de modo que SOBREVIVA.

Com relação as VÍTIMAS INDIRETAS e DILIGENTES, foi possível constatar que essas tinham a oportunidade de escolher se: iriam participar naquele momento, como iriam participar e até mesmo se solicitariam reforços.

Essa descoberta tem direcionado os autores ao desenvolvimento de uma metodologia de Treinamento Baseado em Evidências (TBE), no sentido de propiciar aos discentes, independentes de serem policiais ou não, a saberem que distinguir o tipo de vítima que possa vir a ser, poder SALVAR VIDAS.

Por fim, para cada contexto o mindset escolhido influenciará de algum modo na sobrevivência da vítima, seja o Calmness, Survival, Respect ou Warrior, como descrevem Alexis Artwohl e Loren W. Chistensen.

E você, qual tipo de vítima “escolherá” ser?


Autores:

Onivan Elias de Oliveira[1]

Álvaro Cavalcante Filho[2]

Valdomiro Bandeira de Sousa Neto[3]


[1] Tenente Coronel da Polícia Militar da Paraíba. Co-Desenvolvedor do Workshop de Proteção Pessoal ministrado desde 2017 na Polícia Militar da Paraíba.

[2] Major da Polícia Militar da Paraíba. Co-Desenvolvedor do Workshop de Proteção Pessoal ministrado desde 2017 na Polícia Militar da Paraíba.

[3] Cabo da Polícia Militar da Paraíba. Co-Desenvolvedor do Workshop de Proteção Pessoal ministrado desde 2017 na Polícia Militar da Paraíba.

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